Sons, gasolina e sentimentos, simultaneamente, na análise da van coreana
15 de janeiro de 2015, Aeroporto Nacional Ronald Reagan. Arlington, estado da Virgínia, Estados Unidos da América. São 9 e 15 da manhã e estou a poucos quilômetros do Pentágono, da Casa Branca, do Capitólio e de todo a mise-en-scène do poder americano e quiçá mundial. E acabo de descobrir que logo ali não se colocam malas nas esteiras após o desembarque. Pior: a família viajava em dois voos distintos, e aquelas poucas malas até então desaparecidas logo se transformariam na busca pelo Santo Graal em solo americano.
Felizmente a busca foi desfeita ao descobrir que as mesmas se encontravam em uma pequena sala ao lado das esteiras, prontas para prosseguir na aventura que só começava ali, regada a asfalto e música, contemplações e entendimentos. Sentimentos, abstrações e conclusões.
Um fato é que esta viagem consumia boa parte dos meus pensamentos. Perguntas vagas me rondavam, mas nenhuma delas me responderia. Meu anseio era uma viagem de 234 milhas (ou 374 quilômetros) pela costa leste dos EUA. Manhattan Project: meu destino era New York, que muito me agradaria nos próximos dias ao ponto de me apaixonar. Alcançaria o norte ao volante de uma minivan, com seis pessoas e bagagem suficiente para vestir a Afrika Korps em um dia de frio. E eu estava ansioso pelo que viria. Pode isso, Arnaldo?
Pode. Se o espírito não era de “Coast to Coast, LA to Chicago” da Sade ou “Sweet Home Alabama” do Lynyrd Skynyrd, também estávamos longe da “Long Road to ruin” que um dia ex-morador das proximidades chamado Dave Grohl. Mas, àquele momento, eu ainda era um cara sem carro, admirando os velhos Ford Crown Victoria dividindo o meio-de-campo dos táxis com uma variada fauna que não era tão diversificada na minha ida anterior à terra do Tio Sam, uma década antes. Mas ainda sobre o Crown Vic, uma certeza: quero um Mercury Marauder!
9 horas e 55 minutos. Adentrei, empurrando pessoas e malas fugindo do frio impetuoso que ali fazia, no saguão da locadora para retirar o veículo. Uma minivan, possivelmente com um motor V6 de comportamento sonolento e desprovida de libido. Centro de gravidade nas alturas, peso elevado e suspensão de gelatina. Fechando a escalação do desastre, posição de dirigir que me remete aos meus imaginários dias de motorista de carreta (leia “Jorge, um Brasileiro”!).
Apesar do desânimo que teoricamente me consumia, algo me dizia que eu deveria esperar algo mais de tudo isso. Além do mais, só um carro desse naipe resolveria meu problema de logística naquele momento. Sendo assim, esperar um esportivo com sangue quentes nas veias seria uma miragem, não é mesmo?. Saí das Alterosas sabendo o que me esperava: uma van de Soccer Mom. Mas uma bela van, com linhas modernas seguindo a típica receita de Peter Schreyer, com a imponente grade tradicional da marca com trama tridimensional ladeada por belos faróis, traços fluidos nas laterais e linhas com ares de Bauhaus na traseira: forma e função em bela harmonia.
Burocracia feita, um chaveiro de algum Kia na minha mão. Carnival? Não: Sedona para os súditos de Lady Gaga. Nunca tinha andado em uma, de qualquer forma. Surpresa maior ao chegar no carro indicado e encontrar, negra Ângela e reluzente, uma Kia Carnival 2015 com meras 1000 milhas rodadas. Até mesmo para o mercado americano era de certa forma novidade, uma vez que foi em geração completamente nova lançada no Salão de Nova Iorque em abril de 2014.Os deuses da gasolina, a figura de Nossa Senhora da Combustão Interna, jogavam de forma estranha a meu favor com esse carro “cheirando a boneca nova”, como dizem por esses lados de cá.
Já adianto: o final foi feliz. Mas não me parecia, com a tarefa de acomodar a mim, cinco passageiros e alguns contêineres de roupa no interior claro e bem acabado da van sul-coreana. Se ocupado por sete pessoas, o espaço para as tralhas do mineiro típico ficam prejudicadas. Rebatendo apenas um terço da última das três fileiras de assento, o milagre está feito. Moisés abrindo o Mar Vermelho, em poucas palavras. Felizmente, o sistema de rebatimento da terceira fila é inteligente e amigável, e após uma série de contas manobrando um navio Yamato pelo Canal do Panamá, enfim nos acomodamos.
Assumo meu cargo de capitão e logo compreendo se tratar de uma versão básica, típica das locadoras americanas. Apenas o básico trivial estava presente: ar condicionado com regulagem em separado para os passageiros de trás, direção assistida hidraulicamente, vidros elétricos nas quatro portas, controlador automático de velocidade e computador de bordo. Sistema de rádio XM foi um companheiro inusitado e agradável, assim como o aquecimento elétrico dos assentos dianteiros e a mini geladeira de impressionante volumetria entre o condutor e seu fiel escudeiro. Quanto à beleza do interior: vestida para o sucesso. Bons materiais, ergonomia perfeita. Rebarbas quase inexistentes, comandos a mão, com alavanca de câmbio no console (eu pessoalmente prefiro). Apoio de braços nas poltronas da primeira e segunda fila de assentos tornam a convivência ainda mais relaxada.
10 horas e 30 minutos. Entrava em cena o som do silêncio. Todos a bordo reparam o silêncio ao rodar proporcionado pelo motor V6 de 3,3 litros da linha Lambda (exatamente 3.341 cm³), com bons 276 cv de potência @ 6000 RPM e 336 Nm de torque @ 5200 RPM. Com duplo comando variável de válvulas e injeção direta de combustível, boa parte do torque em baixas rotações. Aliado a tal característica, o câmbio automático de seis velocidades com possibilidade de operações manuais se mostrou bem escalonado, proporcionando cruzeiro em baixas rotações graças a seu longo escalonamento, mas reduzindo de forma correta quando exigido. Suspensões (McPherson à frente, Multilink atrás) macias ao melhor estilo americano, suave. Smooth, simplesmente. Ideal para lidar com suas quase exatas duas toneladas quando vazio.
O bom ambiente a bordo reinava enquanto eu apenas acertava a rota desejada pelo sistema viário ao redor da capital americana. Sem percalços, talvez como um dia Crosby, Stills e Nash fizeram com seu barco, mas trocando as águas cristalinas do pacífico pelo asfalto e o concreto longevo e histórico da costa Leste. Cara, como aquele lugar transpira história a cada palmo que passamos. Interstate I-95 a proa, passando pela New Jersey Turnpike. O anti-ciclone tropical do prazer do gearhead entra em ação: A sensação prazerosa emana não da velocidade, da força “g” atuando sobre nossas vísceras, a adrenalina e a testosterona em conjunto binário e talvez mortal, e sim da satisfação plena navegando por mares tranquilos e nunca dantes navegados.
12 horas. Se estivermos navegando, buscamos um porto para pouso. Ok, no começo não foi fácil, não achavamos bons locais de parada ao longo da Highway, forçando-nos a recorrer a uma cidadezinha como as de filme da Sessão da Tarde, que se multiplicam pela conurbação daquele lugar. Hello America: uma refeição em família, regada à pizza e refrigerante no interior da Carnival se mostrou mais feliz, puro e poético que uma propaganda de margarina.
Se um dia Joe Elliot colocou sua vida em Cruise Control, eu também o fiz na Carnival. Item de série em todas as versões, ele auxilia de forma dúbia: descansa o capitão e nos priva da vontade inacabável de acelerar por aquelas longas retas. E que vontade lancinante! Já estou acima do limite de velocidade da via, mas apenas sigo o fluxo. É o espírito que segue, que rege, que nos faz andar 10 milhas por hora a mais que o limite legal sem qualquer problema. As milhas passam (tocou até Miles Away, do Winger. Escute!), Aproveito máximo da liberdade e do prazer: nada dura pra sempre!
Um mergulho por debaixo de parte da Baía de Chesapeake e uma contemplação, ao longe, das ruas da Filadélfia, onde não vi a chuva negra e sussurrante que ouvi um dia na vida. Ainda que chovesse, os freios com ABS e EBD aliados a controles de tração e estabilidade funcionam bem, obrigado. Os discos nas quatro rodas cumprem bem o seu dever. Air-Bags para todos e por todos os lados estão ali, como se lutassem contra o cão de Hades, resguardando do mal que nos possa ocorrer. A construção em aço de alta resistência fecha o pacote “livrai-nos de todo o mal”.
Enquanto o interessante sistema de som via satélite, de recepção quase impecável e boa qualidade sonora, vai dando tom à prosa e cor à poesia. Sou ladeado por fiel guarda-costas, que me diz que certas músicas não trazem a felicidade para si e que prefere os óculos do John ao olhar do Paul. Cara, como era bacana tudo aquilo. Estranhamente, a Carnival não cantava, não emitia ruído. Mas parecia satisfeita em desempenhar perfeitamente sua obrigação maior: um People Carrier em sua excelência. Suavidade ao rodar em um ato: os passageiros mergulham em sono profundo.
Corro pela Highway norteado pelo sol da meia-noite. Sim, o sol por lá me parece diferente. Ele brilha, mas não assume o trono celeste como nos trópicos de cá. A luz da terra disfarça o frio exterior. Paro novamente e creio que morrerei congelado, mas ainda sobrevivo. Atravessamos estados nessa tocada limpa. Prazerosa, dirigir e imergir no que te rodeia. New Jersey fica para trás, avisto a famosa Manhattan Skyline. Já ouço os olhos azuis na Radio City Music Hall espalhando a notícia de que eu iria fazer parte daquilo em pouco tempo. New York, New York!
17 horas, e lá se vai mais um dia. Viagem de ventania? Não: os fortes ventos laterais que pegamos próximo ao estuário do Rio Hudson não são um problema para nós, mesmo em velocidades mais altas. Engarrafamento para mergulhar abaixo do Rio e adentrar The Big Apple. O tamanho da van não é empecilho para motoristas mais experientes, auxiliado pelos bons retrovisores e pela generosa área envidraçada. São 5.115 mm de comprimento, 1.985 mm de largura e longo entre eixos de 3.060 mm. Mas motoristas inexperientes provindos de terras austrais podem sofrer com as dimensões do veículo. O tempo desperdiçado nas filas de Jersey City me faz adentrar juntamente com a noite na cidade que nunca dorme.
Em meio a várias Uptown Girls em seu mundo de plástico, eu era um rapaz latino-americano ofuscado pelas luzes e iluminado pela metamorfose ambulante daquele lugar. Vias intermináveis, o caos organizado, bicicletas e caminhões guerreando em paz por cada espaço de asfalto. Era o fim da minha jornada. Relegando os frios números às redações e aos eternos teóricos, usando o espírito como trena e o coração como cronometro, só me resta uma certeza: a Kia acertou a mão no Carnival 2015. Não me importava, mas fica o registro: 12,1km/l, com seis pessoas, malas e ar condicionado sempre ligado.
Pena que não sabemos se a nova versão da van coreana chegará a nós, tampouco quais preços serão praticados. Porque o motorista comum se baseia em fatos inexatos, substantivos e adjetivos descrevendo o que se vê, sente e faz. E, visto por esse prisma, a Carnival atende como poucos aqueles que se propõem a viver a vida que ela exige. Desejo a todos que passem um dia por essa experiência.